Os meus pés afundam-se no tapete fofo que cobre a sala com vista para o rio, o sol a desaparecer lá fora, um cobre malsão a estender o seu domínio sobre mim. Estou parado, copo na mão, no meio daquela divisão estranhamente calma, rodeado de coisas belas, envolvido em silêncio. Tremo e não me mexo. O meu cérebro ribomba, sob milhares de pés de soldados a marchar sem misericórida. Sinto que posso desfazer-me a qualquer momento. Lá fora está a cidade, as pessoas, os carros, a vida. Não consigo pensar nisso, agora não. Agora não. Estou doente, tenho que estar longe das coisas e das pessoas, porque lhes poderia ser fatal. E elas a mim. A cidade é bela, as pessoas também e eu já fui belo. Nada mais resta. O meu sangue está doente, é veneno e condenou-me a esta gaiola dourada. Para quê ser Deus se estou longe da minha Criação? Brilhos, luzes, gritos, pele, dor, prazer, fome, vertigem, amor, frio, tudo isso já não me pertence. Sou um espectro, um resto no alto da minha torre de vidro e aço sobre a cidade. Flutuo sobre o tapete branco, o copo escorrega dos meus dedos e espalha o seu conteúdo vermelho sobre o pêlo alvo, manchando-o, uma mácula que podia ser minha. Não consigo respirar, tudo é negro à minha volta. Música, por favor, música, preciso de música, não posso não estar a ouvir música. Não suporto o silêncio. O silêncio é fatal. Fatal. Fatal. Preciso de luz, de cor, de som, de fúria. Mas só tenho silêncio. Silêncio negro, pesado, inescapável. Porque não posso correr lá para fora? Abrir as janelas, escancarar as portas, correr... sim, correr! Dói-me o peito, uma vertigem toma conta de mim, sinto o tapete fofo e branco junto ao meu rosto. Era uma vez um dia de sol e eu estava no meio de um campo florido, num verão perdido no tempo, vestido de branco, a beber champagne e a comer morangos. Estavas comigo e sorrias, na sombra de uma árvore frondosa. O mundo era grande e belo e cheio de possibilidades. Todas as possibilidades do mundo. Demasiadas possibilidades. Nunca se devem dar demasiadas possibilidades ao ser humano, acaba sempre por ser fatal e destruir o pouco que conseguimos criar. Os teus olhos eram azuis e o teu sorriso era alvo e confiante. A tua pele, a minha casa; o teu cheiro, o ar que respirava. Nesses teus lábios me fiz pessoa, completo e absoluto. E foi a ti que abri o meu coração e dei a minha perdição. Os fogos que vimos no céu passaram para os nossos corações e tornaram-nos monstros que quiseram mais e mais até nada sobrar dos teus olhos azuis e do teu sorriso alvo. À minha frente, o tapete branco e fofo estende-se como um deserto impossível de atravessar. Os fogos que vimos no céu passaram para o meu coração e já nada resta. Não vou morrer agora, tenho perfeita consciência disso, seria fácil de mais. Lá fora é de noite e o meu sangue venenoso escorre lentamente para fora de mim. Amei-te. Só isso valeu a pena. Adeus, por agora.
quinta-feira, 9 de julho de 2009
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"a tua pela, a minha casa!"
ResponderEliminaro texto é absolutamente genial! parabéns, é preciso distanciamento, sensibilidade, solidão e auto-ironia para escrever assim.
abraço